Ensino flexível: o que o jogo Tetris me ensinou

O jogo Tetris tem mais em comum com o ensino flexível do que você imagina.

Você move as peças obtusas com mais ou menos velocidade, na esperança de criar a parede de blocos perfeita, o tempo todo contando com blocos aleatórios que nunca param de aparecer. Em algum ponto, você inevitavelmente sucumbe ao empilhamento gradual, mas épico, quando um bloco para o qual não estava preparado o deixa em um frenesi.

Essa descrição resume muitas das minhas experiências de ensino e aprendizagem. Felizmente, o ensino flexível não precisa ser assim. Ao entender o Tetris, podemos superar essas dificuldades comuns. Nesse blog, compartilho não só as trivialidades, mas aplico também as lições que aprendi com esse jogo ao ensino flexível para ajudar a melhorar o envolvimento de professores e alunos.

Termos de Tetris

Antes de começarmos a nos aprofundar sobre ensino flexível, gostaria de definir alguns termos rápidos para iniciantes em Tetris.

Os “blocos” são as peças no Tetris que o jogador deve mover para criar uma parede perfeita. No ensino superior, os “blocos” são elementos do curso usados ​​para criar ambientes nos quais os alunos podem aprender. Esses elementos incluem diretrizes de participação, avaliações e técnicas usadas para compartilhar conteúdo.

Uma “linha clara” (line clear), ou perfeita, ocorre quando você encaixa quatro linhas de blocos sem nenhum buraco.

Em termos acadêmicos, eu definiria uma “linha clara” como um alinhamento perfeito entre todos os elementos do curso essenciais ao aprendizado. É o momento no ensino superior em que suas avaliações, objetivos e conteúdo estão claramente articulados com seus alunos. É também quando os alunos veem as conexões entre o conteúdo e o objetivo do seu curso e demonstram o aprendizado de forma clara e coerente.

O inverso disso, conhecido como pile up, ou empilhamento desordenado, ocorre quando os blocos não se encaixam. Em termos acadêmicos, isso ocorre quando os alunos não sabem o que fazer com o que recebem.

Usando esses termos, uma “linha clara” tradicional no ensino superior exigiria frequência, compartilhamento de conteúdo e avaliação dos alunos de forma inteiramente presencial. Com esse modelo, vimos enormes empilhamentos na pandemia de Covid, quando educadores foram atingidos por circunstâncias inesperadas e difíceis.

A Covid revelou que o uso de blocos tradicionais leva a inevitáveis empilhamentos. É hora de construirmos novos cursos com novos blocos. E tudo começa com o bloco presencial do aluno nas aulas. Esse é o bloco presencial.

O bloco presencial

O bloco presencial tem me atormentado como instrutor e designer instrucional. Ainda estou aprendendo a construir cursos que requerem que os alunos sejam atentos sem exigir sua presença física.

Quando a Covid apareceu, muitas pessoas (inclusive eu) ficavam ofendidas com os alunos que participavam das aulas do Zoom sem ligar a câmera. Dei aulas no Zoom em que não tinha ideia se meus alunos estavam realmente lá. Era como falar com uma parede de blocos, e isso é muito desagradável tanto on-line quanto presencialmente. Já estive em salas de aula cheias de alunos que preferem dormir, ou onde menos de 10% da turma aparece. Descobri que embora você possa fazer as pessoas aparecerem, você não pode fazer com que elas estejam presentes, o que resulta em um empilhamento desordenado.

Para criar uma linha clara com esse bloco, acredito que devemos repensar o que significa “assistir” a uma aula. Em vez de construir cursos que exijam presença (ou seja, testes rápidos, pontos, câmeras obrigatórias), o ensino flexível deve pedir aos alunos que estejam presentes de maneiras que façam sentido para eles.

Em vez de exigir que eles nos encontrem em determinados horários e lugares ao longo da semana, poderíamos dizer aos nossos alunos que discutiremos perguntas e conceitos durante o horário de aula regularmente programado. Eles serão bem-vindos a participar se conseguirem tirar proveito. Mas se não for possível frequentar, eles podem continuar se engajando no conteúdo do curso e nos informar como estão se saindo.

A maneira como nossos alunos nos informam sobre seu progresso é um potencial bloco substituto para “presencial”. Entretanto, cabe a você decidir como deseja implementar.

Esse bloco forneceria carga horária virtual? Os alunos teriam de realizar atividades semanais para ajudá-los a aplicar o material? Seriam oferecidas oportunidades para discussões com os colegas de sala? O que quer que você decida, ajude os alunos a valorizar sua “presença” e permita que façam isso fora do horário tradicional do curso, mesmo se o curso for presencial.

Isso não quer dizer que não responsabilizamos nossos alunos pela aprendizagem. Nós simplesmente os responsabilizamos fazendo com que nos mostrem o que sabem quando dão o melhor de si, não estritamente em um horário ou local em que a direção considere apropriado.

Se os alunos estão frequentando a aula só para não ficar com falta, você nunca terá sua presença total. Em vez disso, precisamos encontrar blocos para envolvê-los no conteúdo, para que possam aplicar esse conhecimento no mundo deles e em um momento e lugar que funcione para eles.

Agora é provável que você esteja se perguntando: “Como faço para engajar meus alunos se eles não ‘vêm’ para a aula?” Ótima pergunta! Esse é o bloco conteúdo.

O bloco conteúdo

Adoro uma boa palestra. Mas nos últimos dez anos não assisti a um único culto religioso sem ficar entediado, fazer listas de compras ou dobrar aviões de papel. No entanto, assisto religiosamente a Netflix. Por quê? Porque posso assistir à Netflix quando for conveniente.

Acredito que o conteúdo acadêmico deve ser oferecido com uma forma de semelhante de “se realizar”.  Os alunos devem ser capazes de escolher, até certo ponto, quando e como consumir o conteúdo acadêmico. Nem todo mundo consegue se sentar em uma sala de aula por uma hora e permanecer atento. Portanto, os alunos devem ter a oportunidade de se envolver com o curso em um momento que faça sentido para eles e em um formato com o qual se sintam confortáveis.

Não se preocupe, não vou dizer para você apenas criar vídeos. Em vez disso, considere fornecer informações aos alunos em várias modalidades (quando apropriado e possível) e deixe-os escolher quando e qual opção preferir. Pense nisso como a criação de um novo “bloco” para substituir o conteúdo tradicional.

Alguns alunos aprendem melhor frequentando as aulas. Claro, dê a aula, mas grave-a também. Ao gravar, adicione legendas. Dessa forma, os alunos têm uma transcrição para leitura e os alunos com dificuldade de ouvir podem acompanhar. Se tiver tempo, faça o áudio e disponibilize-o também.

Por fim, peça aos alunos que utilizem o livro-texto, se aplicável. Se não, veja que outro conteúdo está disponível gratuitamente. Você pode até mesmo pedir a eles que ajudem a organizar o conteúdo como parte de suas tarefas semanais.

A grande lição aqui é: Por que fazer os alunos comparecerem à aula quando eles podem consumir o conteúdo de outras maneiras que podem ajudá-los a aprender com mais eficácia? Você deve criar blocos que sejam fáceis de ajustar às necessidades e horários dos alunos para criar uma linha clara (line clear) perfeita.

Quaisquer que sejam os blocos usados para passar o conteúdo, é fundamental ajudar os alunos testando suas lacunas de conhecimento. Isso nos leva ao bloco final e mais importante: Avaliação.

O bloco avaliação

Quando a Covid fechou quase todas as universidades, muitos membros do corpo docente tiveram dificuldade para descobrir como avaliariam os alunos de forma justa, eficaz e conveniente. É difícil estabelecer uma linha clara com esse bloco: como lidar com as avaliações quando não esperamos que as pessoas apareçam na aula.  A resposta depende do que você considera uma linha clara no seu curso.

Costumava aplicar provas em meu curso, até que percebi que não combinavam com o que eu queria que os alunos aprendessem. Em outras palavras, eram blocos que não se encaixavam perfeitamente. A aplicação das provas era eficiente e fácil, mas eu queria ver se meus alunos sabiam usar as informações, e não se conseguiam reconhecer termos no papel. Eu precisava encontrar um bloco diferente para uma linha clara.

Não que os exames e provas sejam ruins. Eles funcionam, principalmente para turmas com muitos alunos. Mas você precisa considerar o que está testando. Para ajudar a identificar a avaliação correta, gosto de fazer as seguintes perguntas aos instrutores:

 

Esses são os blocos que você deve construir para uma linha clara.

Acima de tudo, você deve se perguntar se sua prova se alinha com o que deseja que seus alunos aprendam na sua aula. Se não tiver certeza, consulte novamente os seus objetivos.

Em meu curso, por exemplo, queria medir se meus alunos poderiam envolver um público cativo. Eles poderiam fazer com que um grupo de alunos desanimados se ​​entusiasmassem com a reciclagem? Seriam necessárias excelentes habilidades de PowerPoint, de expressão oral, de excelente organização e informações interessantes baseadas em fontes exclusivas para fazer isso. Se um aluno pudesse fazer isso, teria construído o bloco perfeito para eles. Eles seriam aprovados no meu curso com louvor, sem a necessidade de provas.

Além disso, lembre-se de que nem todo aluno é bom em testes. Em vez de testes, você pode oferecer projetos em grupo, avaliações por pares ou trabalhos para fazer em casa como blocos alternativos. As opções para criar uma linha clara são infinitas.

Reflexões finais sobre ensino flexível

Trabalhei muito nos últimos anos, principalmente durante a pandemia, para implementar esses blocos enquanto criava cursos e evitava empilhamento. Embora o ensino flexível sempre venha com seus próprios empilhamentos, podemos escolher a forma como preparamos nossos blocos para o sucesso.

Não tenho dúvidas de que o ensino flexível é uma honra e um privilégio, e quero que todos gostem de fazê-lo. Espero que, ao mudar os blocos que usamos, possamos criar muitas linhas claras para os nossos alunos. Boa sorte no próximo ano letivo, desejo nada mais do que jogos perfeitos de Tetris!

 

 

Adam Barragato é designer instrucional sênior na Universidade de Purdue e foi consultor de ensino-aprendizagem. Este artigo escrito foi adaptado e traduzido para o português pela Cengage Brasil. O texto original pode ser lido aqui